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        Ainda não acreditava. Mais uma vez, mais do que enganado, sentia-se ultrajado e incrédulo. Que pêssego  tão estúpido. Tão cego. Tão confuso. Mas, afinal o que lhe escapara desta vez? Tudo parecia correr tão bem …

Apostara tudo e, talvez, por isso sentia ainda mais o tudo que julgara que perdera. De que vale afinal acreditarmos se, mais tarde ou mais cedo, tudo se vai. Tudo se perde. Deixando um corrosivo travo, bem ácido e amargo, de dor e desencanto.

        Um familiar - como vai isso?- despertou-o dos seus negros pensamentos.

-Ah, és tu – limitou-se a balbuciar, azedo, para o seu melhor amigo.

- O que se passa contigo? Estás cá com uma cara!!! A coisa está fusca!!!

- Pois está, pois está. E mais do que fusca, desta vez está preta. E bem preta.

- Então o que foi desta vez? – inquiriu o seu companheiro de já longo jornada.

- Pêssegas. O que havia de ser? – retorquiu com um azedume ainda mais azedo.

- Outra vez? – retorquiu, com falsa incredulidade, o seu amigo.

- O que é que queres? São todas iguais e não passa disto.

Um hum prolongado foi lançado pelo amigo, que parecia estar a descortinar algo mais. – Conta lá então o que se passa.

- Ok. Se assim queres aqui vai. Mas prepara-te. Desta vez foi assim.

Desde que a vi, percebi logo que era aquela. Já tinha sentido muita coisa mas, desta vez era diferente. Mesmo!!! E, também percebi logo, que eu não lhe era indiferente.

Primeiro foram as formas. Santa Mãe!!! Como pode ter alguém tudo assim do tamanho certo, no sítio certo?

Depois foi o cheiro. Mãe Santíssima. Que perfume, que êxtase.

E aquela pele? Firme e macia. Como pode alguém resistir a isto?

E aquele gosto!!! Que gostosa. Que delícia …

Um brutal – Então afinal o que se passou? – resgatou-o do devaneio. - Como é que se deixa escapar alguém assim. Não entendo – disse intrigado o amigo.

- Deixei escapar?!!! – explodiu. – Deixei escapar?!!! Não deixei escapar ninguém. Ela é que me enganou … E, ainda por cima, também me acusou de fazer o mesmo.

- Com é que te enganou? Não estou a perceber. Pelo que depreendi ela também estava interessada. Parece que essa relação ainda durou algum tempo.

- Pois é, meu amigo. Tudo corria às mil maravilhas, até eu perceber que tudo não passava de um jogo para me apanhar.

- O quê? – inquiriu de novo o amigo. Continuo a não perceber.

- Não te falei que no início era tudo maravilhoso? O cheiro, a pele, a polpa?

- Sim, falaste. E daí?

- Pois é meu amigo. Isso foi no início. Porque depois as coisas mudaram.

- Como mudaram? Estou cada vez mais confuso.

- Um dia, estávamos nós nas nossas brincadeiras íntimas e dei uma dentadinha mais funda e percebi algo de estranho e duro. Disfarçadamente, dei outra e voltei a sentir o mesmo. E, comecei a reflectir. Afinal, havia algo escondido por detrás daquela fachada toda. E ela nunca me tinha falado nisso. Mas não liguei até que um dias as coisas azedaram entre nós e falei no assunto. E aí é que tudo começou mesmo a descair.

- O que se passou? – perguntou o já interessado amigo.

- Ela acusou-me de falso e hipócrita. Em primeiro lugar, por não lhe ter dito nada antes. Depois porque ela também já tinha percebido o mesmo em mim e não valorizara como eu estava a valorizar.

- Ehhhehheheheh – manifestava o amigo enquanto apertava as mãos na barriga de tanto rir.

- Então eu conto-te isto e tu ris de mim assim? – disse estupefacto.

- Mas eu não estou a rir de ti. Estou a rir de vocês. Também foram apanhados – ehehehhe - e não parava de rir.

- Mas apanhados por quê? – não percebo nada.

- Espera um momento. Já te conto – disse o amigo, enquanto enxugava as lágrimas que o riso fez aflorar.

- Pois é, meu amigo. Também vocês foram apanhados. Vou te contar.

Há quem diga, que quando Deus fez machos e fêmeas, de todas as espécies, arranjou forma de se identificarem em termos de espécie e de preferências. Se assim não fosse imagina que confusão não seria. Para além, de haver o risco de haver muitos a quererem alguns poucos. Assim, é normal o teu fascínio pela tua pêssega especial. Que, para muitos, não passa de uma banal pêssega. O que reverte em sorte para ti.

Porém, Deus, ou quem ocupa o seu lugar, parece não ter ficado por aqui. Deus teria um plano. Um plano que levasse as relações para lá da básica satisfação dos sentidos e dos apetites carnais. E, para isso, arquitectou outro plano. Um plano para que as relações acabassem por desaguar no Amor. E se convertessem num espaço de exercício e cultivo desse maravilhoso sentimento e estado de Alma. Essa sim, razão primeira e última da Vida.

E, para que tudo isso funcionasse mesmo, Deus teria engendrado ainda mais um plano. [Nesta parte começamos a perceber por que muitos lhe chamam o Arquitecto Supremo …]. Para que houvesse atracção e envolvimento. Para que levassem as coisas até ao verdadeiro e único FIM: a mais elevada e sublime vivência do Amor.

Então, no nosso caso terá feito assim. Criou uma camada externa a que chamamos pele e polpa. Com cor, textura, perfume, forma … Para que nos reconhecêssemos, atraíssemos, provássemos, gostássemos e envolvêssemos. E foi isso que aconteceu convosco. O que abona em favor da perfeição e eficácia do plano.

Mas o plano não fica por aqui. Deus teria arranjado forma de terem muito mais. [Aqui ficamos também a suspeitar de que Deus não se contenta com pouco…] E para isso, guardou o melhor dentro de um cofre duro e resistente, e que foi colocado em lugar secreto e seguro dentro de cada um de nós. A esse melhor chamamos semente. Ao cofre, que a guarda e protege, chamamos caroço. E foi aí que os vossos dentes chegaram. Porque estava a chegar a hora de deixarem de apenas se comerem um ao outro, para começarem cumprir também o único e verdadeiro plano para vocês, e para todos nós. O da prática do verdadeiro Amor. Do Amor-Cuidado. Do Amor-Escuta. E, através dele chegar  à prometida Terra da Abundância. Sim, porque há uma farta e eterna recompensa para quem, com carinho e com desvelo, cuidar da semente que reside dentro do caroço. A recompensa de todos os frutos que uma semente cuidada e amada pode produzir. Sabes dizer-me quantos são? Eu não sei.

E foi aqui, meu amigo, que vocês não souberam, ou não conseguiram, chegar. Ninguém enganou ninguém. Ambos buscaram o mesmo, da melhor forma que sabiam. Da forma que achavam que era a melhor. Nada mais. Ela, pelos vistos, esteve mais próxima do que tu. Mas tu, ao sentires-te enganado, caíste fora e deixaste o tesouro para outro mais sábio e mais paciente.

Mas, se isto te consola, não foste, não és nem serás o único. E digo-te mais. Há quem diga que até com os humanos isto acontece …

Rogério Duarte/2016

Brincamos, não?

Os dois pêssegos

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